Começo agora uma jornada pelo universo complexo e maravilhoso da musicalidade. O que mais me fascina é que desde já, sei que jamais chegarei ao final da discussão sobre esse assunto, mas vou tentar ao máximo deixar o pensamento organizado para poder orientar tanto quem está começando a querer incluir a musicalidade em sua dança quanto quem precisa ensinar esses conceitos para seus alunos mas tem dificuldade de organizar as ideias.
Gostaria de Agradecer a dois amigos que me ajudaram a escrever esse conteúdo.
Sérgio Viana, Líder do Forró em Lausanne e à Incomparável Juliane Rosa (Juzinha) com quem tenho o privilégio de trabalhar a vários anos.
O Que é Musicalidade?
Na dança, a musicalidade é a expressão corporal daquilo que se ouve na música. É como se tocássemos um instrumento sem impacto sonoro, e sim visual.
As primeiras noções de musicalidade que aprendemos são o ritmo e a marcação. Aprendemos a sincronizar nossas pisadas com uma pulsação repetitiva de um instrumento percussivo característico, normalmente de fácil identificação.
Ouvido
A musicalidade começa no ouvido e não na marcação, passos ou enfeites que evidenciem a musicalidade. Estas marcas corporais não são mais que a consequência corporal de como um@ dançarin@ escuta/conhece uma música, aliados ao repertório d@ mesm@.
Uma pergunta frequente é “mas para ser musical é preciso conhecer a música antes?”.
A resposta mais abrangente será algo do gênero: “embora possa ajudar a prever transições/pausas complexas, não necessitamos conhecer a música se a soubermos escutar”.
Há um fio condutor matemático muito evidente em quase todas as músicas que escutamos. Escutar bastante o repertório de músicas da modalidade que você dança ajuda sim a desenvolver o ouvido mas o que vai potencializar ainda mais o ouvido, será ser capaz de decodificar a matemática e a estrutura padrão presente de uma maneira global. (Em breve falaremos mais sobre esse assunto)
Interpretação
A primeira tarefa a se fazer é interpretar a música, essa interpretação está no sentido de internalizar, absorver da música aquilo que te toca e que te chama a atenção. Por isso, inclusive, que avaliar a musicalidade é uma tarefa complicada. Cada um extrai um sentimento, uma “vibe” diferente da música. Essa tarefa é a parte fácil da musicalidade, e a que engana muita gente.
Para absorver algo da música “basta” escutá-la. “Basta” está entre aspas, pois, escutar a música e dançar ao mesmo tempo é um tarefa complicada pra algumas pessoas. É uma coordenação que também necessita de treino, apesar de ser mais natural pra algumas pessoas, principalmente aquelas que já tem uma relação mais íntima e mais longa com a música.
Mas como tudo na vida o excesso pode ser um problema, muitas pessoas que têm um envolvimento muito profundo com música a muito tempo, tem uma dificuldade muito grande com a musicalidade, pois seus ouvidos são muito treinados e essas pessoas conseguem extrair muita coisa da música, porém na maioria dos casos, tocar um instrumento é uma tarefa motora fina (utiliza músculos e articulações pequenas), e a dança é uma tarefa motora grossa (utiliza grandes articulações e músculos) por mais. Desta forma expressar com o corpo aquilo que tiramos da música é o maior desafio.
Vamos a ele!
Expressão
Como mencionado acima o maior dos desafios da musicalidade, é produzir movimentos corporais que estejam baseados naquilo que interpretamos da música. Votando ao caso do músico, temos uma pessoa que identifica uma enorme quantidade de informação vinda da música mas seu corpo não tem repertório motor (Quantidade de movimentos já treinados e memorizados) suficiente para poder contemplar tudo aquilo que identifica da música. É como se fosse uma pessoa que compreendesse uma língua porém não conseguisse falar naquele idioma.
É por isso que muitos profissionais, eu inclusive, preferem aprofundar os estudos de musicalidade após um tempo de maturação dos alunos. Nada impede,porém, de começar as reflexões e ensinos da musicalidade em um estagio inicial dos dançarinos, pois é possível, tendo pouco repertorio, fazer as mesmas movimentações de infinitas formas diferentes. Muitas vezes, no começo do aprendizado, encontramos uma enorme dificuldade para executar uma movimentação diferente da forma que aprendemos primeiro. Mas com uma boa orientação e dedicação tudo vai ficando mais fácil e mais natural.
Existe também o caso contrário, pessoas com um repertório motor gigantesco, que não conseguem adequar aquilo que estão fazendo com o que vem da música. É como aqueles discursos longos com belas palavras, palavras difíceis e de efeito, mas que no fim não querem dizer nada.
Este já é o caso do aprendiz que passou um demasiado tempo sem estudar a musicalidade. Uma pessoa que já tem mais facilidade de manejar o próprio corpo porém não exercitou os ouvidos.
Corpo de Dança
Primeiro começo esclarecendo o que quero dizer com o termo “corpo de dança”. Que fique claro que todo e qualquer corpo é capaz de dançar e não existe um corpo certo ou errado. Mas cada dança possui certas marcas que são fortemente influenciadas pelos dançarinos mais avançados e pelos professores de cada estilos. As vezes essas marcas são fundamentadas na tradição, na origem daquela dança, e algumas vezes essas marcas vão se atualizando e se modificando de acordo com as tendências criadas na sociedade e na cultura em que os dançarinos estão inseridos.
Com o termo corpo de dança (utilizado na escola em que trabalho, outros locais e escolas podem ter o mesmo conceito com outros nomes) queremos nos referir ao sentido mais primária da musicalidade, que é se movimentar de acordo com o sentimento, sensação ou impressão mais forte que a música lhe trás. Isso é feito durante toda a música e pode mudar se o clima da música mudar também. É como se fosse o cenário em que uma peça teatral vai se dar, ou come se fosse o pano de mesa antes de receber a vasta quantidade e variedade de alimentos.
É algo que não busca destaque, mas está sempre ali, e se não estiver passa uma sensação de que está faltando algo. Não importa quão belos são os movimentos, sem esse pano de fundo, a impressão é que aqueles corpos estão dançando ao som de uma outra música ou então até sem música alguma. Eu mesmo prefiro assistir a vários vídeos meus sem o som, pois nem sempre conseguimos executar aquilo que gostaríamos em relação ao que captamos da música.
É importante destacar que o corpo de dança não está atrelado a nenhum passo ou marcação específica. Está presente em todos os movimentos, através da postura, da suavidade, da velocidade de cada movimento. É a maneira com que o corpo se comporta quando fazemos os passos e não qual passo estamos fazendo.
Música Lenta
Separarei em tópicos as principais dicas para conseguir expressar sua musicalidade e depois tentarei colocar as sensações mais típicas e como essas sensações afetam a forma de utilizar os recursos apresentados.
Pausa
Nas músicas lentas as pausas tendem a ser enormes, ou seja, você fica um grande tempo sem poder pisar no chão, mas isso não significa que você deve ficar parado, congelado. Pausar a marcação não implica em parar o corpo.
Quando a música passa a sensações leves, suaves, contínuas é muito importante abusar da movimentação nas pausas. Movimentar-se durante é uma estratégia valiosa para passar a ideia de fluidez corporal, de continuidade. São características de músicas lentas em que os instrumentos de percussão não estão em tanta evidencia e há abundância de preenchimento por parte dos instrumentos melodiosos e da voz.
Mas é claro que se quisermos passar a ideia de algo, cortado, quebrado ou de uma marcação bem forte e evidente, podemos minimizar os movimentos na pausa de forma a congelar o corpo por breves períodos indicando os cortes da música. Vale lembrar que se ficarmos imóveis por muito tempo podemos perder a oportunidade de fazer uma boa preparação para a próxima movimentação, portanto esses cortes, congelamentos costumam ser bem pontuais e são mais breves do que a pausa.
Transferência de Peso
Uma das sensações mais comuns das músicas lentas é a de suavidade e leveza. Para suavizar a pisada a ideia é muito simples, apesar de a execução demandar bastante atenção e prática. Ao pisar toque chão com os pés sem o peso do corpo. A ideia é a mesma de chegar à beirada de uma piscina e colocar a pontinha do pé na água para ver se a temperatura te agrada. Dessa forma teremos um transferência de peso mais gradual e controlada, ajudando não só a suavidade mas também na estabilidade dos seus movimentos.
Nas músicas mais lentas, mesmo os pequenos os erros de equilíbrio são muito evidentes, portanto estabilidade é algo que você sempre estará procurando.
Naturalmente no caso das músicas muito marcadas pela percussão a maior tendencia é de o pé e o peso chegarem juntos ao chão, como se estivessem tocando notas secas de um tambor.
Altura do Centro de Gravidade
Este quesito é, na minha opinião um dos fatores que mais geram um resultado visível e infelizmente é negligenciado por muitos dançarinos. Muitas músicas passam a sensação de algo profundo, intimista, às vezes até um clima mais pesado e fechado. Nestes casos é interessante descer um pouco o seu centro ou em outras palavras abaixar um pouco. Podemos dobrar um pouquinho mais os joelhos e abrir um pouco mais a base, dançar com a ponta de pé mais baixa (no caso de quem dança na ponta), relaxar um pouco mais os ombros. Eu gosto de dizer que é a postura corporal de alguém que está cuidando de uma criança, claro que não precisamos descer tanto, mas essa postura mais aterrada também contribui para a ideia de que você está se preocupando, cuidando do seu par.
Por outro lado, existem as músicas que dão uma ideia de uma leveza muito grande, precisamos então de uma forma de parecer que estamos flutuando mais, explorando mais o plano alto da dança. Podemos esticar um pouquinho mais os joelhos (sem deixar travar), fechar a base, abrir mais o peito, olhar mais para cima, subir na ponta dos pés e nas movimentações de braço deixar o braço subir um pouco mais.
Dinâmica Energética
Nas músicas lentas normalmente temos dois momentos bem claros, os momentos de alta e momentos de baixa energética. Reforço aqui que nas músicas lentas as pausas são muito grandes o que pode dar a impressão que a música está muito parada ou que não tem um andamento contínuo. Porém isto é uma visão muito limitadora.
Os momentos de marcação de uma música lenta estão cheios de vida e podem, inclusive, ser preenchidos com deslocamentos grandes, passadas largas sem passar a ideia de pressa ou de instabilidade. E as pausas são uma baixa energética notável, nelas o movimento passa a acontecer quase que em câmera lenta.
É como se eu estivesse sempre em um ciclo interminável em que a energia sobe e desce, liga e quase desliga, se agita e se acalma. Muita gente foca na parte de baixa energética, então reduz demais a amplitude dos movimentos, restringe articulações “chave” como o joelho e o quadril, acabam não conseguindo gerar espaços ou preencher espaços por se movimentarem sempre de forma muito pequena e as vezes fazem as marcações mais lentas do que a música.
Braços
Os braços são estruturas super importantes na musicalidade. São as estruturas que conseguem alcançar o mundo com mais facilidade. Na comunicação não verbal são as partes do corpo que são usadas para chamar a atenção para você.
Procure lembrar que os braços são separados das pernas, ou seja, eles não tem função de marcação, portanto a pausa não existe para eles. Os braços se movem de forma contínua mas suas movimentações possuem um começo um meio e um fim.
Procure fazer com que o começo e o fim deste caminho coincidam com as marcações da música.
lembre-se também que o braço é tri articular (ombro, cotovelo e punho), portanto consegue passar a ideia de leveza e continuidade ao mover as articulações de forma separada e muitas vezes em sequencia ( normalmente começando pela articulação do ombro, depois a do cotovelo seguida da do punho).
Quando queremos passar a ideia de algo mais marcado e a ideia de interrupção, movemos o braço um pouco mais rápido utilizando as três articulações de uma só vez de um ponto a outro.
Rosto
Lembre-se que estamos em um universo de comunicação não verbal. A expressão facial que você faz, muda completamente a percepção da musicalidade. Sorrir o tempo todo em uma música muito pesada, melancólica pode gerar um grande contraste de sensações. Lembre-se que seu rosto também dança e se comunica.
Conclusão
O treino da musicalidade exige muita atenção à música e ao par. Assim como todas as demais habilidades na dança, exige muita dedicação, acertar e errar muitas vezes as tentativas antes de conseguir uma consistência. Na minha opinião é uma das habilidades mais complexas e belas da dança a dois.
Lembre-se que com uma orientação adequada tudo ficará mais fácil e terá uma qualidade superior em menos tempo. Bora estudar!
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